domingo, 22 de maio de 2011

"Resíduos de Paixões que o tempo levou"

Fazia horas. Ela se concentrava com uma força anormal para não deixar as lágrimas caírem. Sentada na varanda, seguia os carros barulhentos e incômodos que passavam cada vez mais, cada vez com mais pressa. Seguia, seguia seguia. Segurava. Seguia. O vizinho batia com a vassoura na parede ferozmente, provavelmente irritado por causa do som que estava alto. Isso a ajudava a se concentrar em não deixar as lágrimas caírem. Sentava na cadeira vermelho-sangue que ficava na varanda, pegava o pequeno binóculo na mesinha ao lado, tampava os lindos olhos cinzas com as lentes e ficava observando o sétimo apartamento de esquerda para direita. Tal apartamento ficava do outro lado da rua, tal apartamento ficava no quarto andar do prédio amarelo. Com as luzes apagadas, o apartamento estava iluminado apenas pela fraca luz do Sol de final de tarde. Era possível ver o cachorro dele, que ela dera o nome de Spock, deitado no sofá marrom da sala. Então ela dirigiu a visão para a janela do quarto que estava aberta, mas a cortina fechada impedia que ela visse o que estava acontecendo.
Ele tocava violão enquanto a garota loira dava uma olhada em seus desenhos. Nunca dizia nada, só ia passando, passando, passando... e ele lá, tocando Chico Buarque. Quer café? Ela disse que só tomava chá, então ele se sentiu obrigado a se desculpar, disse que não tinha chá, já que não tomava. Ela sorriu e ele foi pra cozinha. No meio do caminho, parou pra acariciar o cachorro e tirá-lo do sofá. Estava todo babado e seria terrível pra limpar depois.
Ela saltou ao perceber. Ele estava só de cueca samba canção, com um aspecto cansado e cabelos bagunçados. Tem visita? Que bom. Cansou de ouvir o vizinho bater com a vassoura na parede e foi abaixar o som. Aproveitou e mudou para Chico Buarque, e sentiu que deveria pintar algo.
O cansaço o impedia de fazer as coisas direito, então derrubou pó de café no chão, açúcar na pia... um desastre. Se irritou e sentou em uma das cadeiras da mesinha pra dois, e ouviu os passos da garota loira. Agora vestida, ela dizia algo que ele não compreendeu direito por causa do sotaque, mas percebeu que ela estava indo embora. Levou-a até a porta e a abraçou. Esperou que isso fosse o suficiente, não queria falar nada. Foi até a varanda, acendeu um daqueles cigarros de cereja que a garota da semana passada tinha esquecido e ficou encarando o prédio cinza... Percebeu que era primavera, enquanto pensava que Cecília Meireles estava certa.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

After the Curtain

Sentou na beira da cama. Tinha algumas opções. Poderia olhar pra cidade amanhecendo, para as pessoas sem alma e sem vontade indo trabalhar, para os aviões - malditos aviões - roubando o céu dos pássaros, o céu dela, se apoderando de coisas que os humanos, por natureza, não deveriam... Ocupar. Poderia observar o movimento do hospital que ficava logo ali, na rua principal. Vez ou outra ela conseguia pegar alguém sendo levado às pressas por ferimentos graves, como total falta de esperança, o que geralmente explicava as faixas nos pulsos, ou o andar cabisbaixo de quem pensa "Porra, nem pra morrer eu sirvo". Estava desenvolvendo melhor a ideia quando percebeu algo se movendo atrás dela. Seria a segunda opção. Não tinha muito o que ver, pra ser sincera, já que ele tinha a odiável mania de cobrir-se por inteiro com o edredom, deixando então a mostra apenas os cabelos pretos ondulados. Imaginou que ele estivesse de boca aberta, babando em tudo que estivesse próximo dos lábios rachados, e com os braços abertos, em uma posição que, para quem observava, parecia extremamente desconfortável mas que, para ele, imaginava ela - e todas as outras que já o viram de tal forma - era a única coisa a ser feita com os braços que, quando não estavam sendo usados para tocar, desenhar, escrever ou acariciá-la, apenas atrapalhavam.
Escolheu a segunda visão e tratou-se de se enfiar nas cobertas. Que visão magnífica. "Ele deveria ser santificado", pensou ela. Era bonito demais para que alguém sequer considerasse outra opção. O nariz "de leãozinho" constantemente vermelho, o cabelo que caia tão bem com todo o resto e ah... faltava talento de sua parte para descrevê-lo. Mas ela sabia que, quando chegasse o dia, ah, quando chegasse o fatídico dia em que ele levantaria de lá pra nunca mais voltar... sua beleza permaneceria em tudo que ele já tocou. Permaneceria nela e finalmente ela seria boa o suficiente.
Beijou-lhe os olhos que dormiam e foi fazer café.